A pessoa que não lê, mal fala, mal ouve, mal vê. (Malba Tahan)

domingo, 9 de maio de 2010

Filme "Um casamento à indiana". Direção de Mira Nair. 2001.

Para quem assistiu ao filme Monsoon Wedding (Um casamento à indiana) de Mira Nair esta descrição não parecerá estranha, entretanto pretendo nesta resenha carregar nas cores daquilo que mais me chamou a atenção em seu filme, ou seja, o tratamento dado ao meio termo, aos híbridos culturais, àquilo que não se define como exclusivo ou essencial. A documentarista indiana narra um casamento arranjado entre dois jovens punjabi de classe média. Num ambiente descontraído que marca os dias que antecedem as núpcias, parentes e convidados da família Verma transitam em Nova Delhi. A cidade é apresentada como culturalmente híbrida. A pista nos dá a diretora ao dizer que “a Índia tem um bilhão de pessoas. Não há uma família típica, mas para a classe média Punjabi, aquela ali é a realidade”.

Assim como no filme a festa de casamento acima descrita poderia ter sido realizada em qualquer lugar. Segundo Mira Nair seu filme poderia ser uma descrição de seu primeiro casamento, ela própria uma punjabi. Não designar onde este casamento está acontecendo permite pensar um dado de similitude pelo fato deste tipo de cerimonial ser facilmente encontrado em comunidades e situações a princípio desconexas entre si. Poderia ser em qualquer das comunidades rurais do Vêneto ou da Calábria no século XIX. Quem sabe um casamento em João Pessoa, na Paraíba ou uma descrição de um casamento entre descendentes de imigrantes de língua italiana no interior de Santa Catarina.

No filme o casamento acontece nos anos 90, período marcado pela emergência dos debates acerca das noções de pertencimentos e também de toda forma de intransigência decorrente disso. Mas a diretora de Casamento à Indiana olha para o seu tempo e comemora o presente, diferentemente de uma Índia de Forster, do livro Passagem para a Índia, estranha e inacessível(1). Mira Nair interroga o presente com uma profusão de situações híbridas (2) , causadas pela diáspora Punjabi, mas também por todo um movimento no período pós-colonial na Índia. O filme sugere noções de pertencimento entrecruzadas, viajadas, territorializadas nas redes e pelas redes de parentesco que por fim são indianas. Ou pelo menos de uma família indiana que tem muitos de seus membros em regiões distintas da Índia, Austrália ou Estados Unidos sem perderem o contato entre si. A narrativa dramatiza uma certa desilusão entre os noivos acerca de suas diferenças e expectativas quando mal se conhece com quem se vai casar. Dois casamentos se anunciam. A noiva que protagoniza o papel principal mora em Nova Delhi, o noivo tem curso superior e mora nos Estados Unidos. Ela foi criada para se casar, com um destino traçado pelos pais e ignorado por ela até ali. Além do mais a moça tinha um amante, famoso apresentador de tv que era casado. O outro casamento se dá entre os empregados da casa. Ele um promotor de eventos, organizador de casamentos que nunca se casou e que mora com a mãe que aplica as economias na bolsa. Ela é empregada doméstica na casa da família Verma.

Um celular nas mãos do organizador da festa, de casta inferior e contratado para organizar um casamento, conduz os trabalhos de montagem dos adereços, das tendas e dos ambientes de comensalidade da festa. A certa altura o pai da noiva ao indagar sobre a ausência de um quesito na ornamentação do jardim este lhe responde: Está aqui, no papel. Como no estrangeiro. A autoridade do pai da noiva sobre o jovem decorador não provém apenas do fato das castas apresentarem possibilidades de prestígio social diferenciados e desigual. No caso o pai é apresentado como de uma casta superior, bem sucedido nos negócios, mas bastante endividado graças aos preparativos para o casamento. O decorador é de uma casta inferior, mas dentro de um quadro de ascensão pelo trabalho e cuja velha mãe aplica suas economias em ações na bolsa de valores. A relação entre os dois antes que pautada na tradição apresenta-se em sua forma moderna: um contrato de trabalho.

Tampouco há essencialismos no filme no que se refere ao repertório cultural tradicional da Índia, deslocado a todo instante com situações de estranhamento e hibridismo. É isto o que ela nos propõe ao criar situações que destacam o comportamento dos primos que viviam nos EUA, Austrália ou outras regiões da Índia e que se vêem juntos circunstancialmente em um casamento.

Mira Nair interroga: o que é um indiano? Este indiano essencial não seria ele mesmo fruto das práticas do colonialismo europeu mantido pelos predicativos do discurso pós-colonial? O filme, em linhas gerais, nos diz de uma Índia culturalmente híbrida (3) e termina com a consumação de dois casamentos e a possibilidade de um terceiro. E num dos últimos diálogos, uma das primas, Yasha, diz ao seu primo de Melbourne: tornamos você um indiano.

Neste sentido, o filme compõe uma leitura híbrida, tencionada entre a tradição e a modernidade. Para além da menção ao amor romântico ocidental como elemento condutor da trama há que se exorcizar a mentira representada no assédio constante às meninas da família pelo “Tio” Tej, símbolo da relação com os Estados Unidos e da estabilidade financeira da família, expulso na cerimônia. Fica explícita ainda na explicação de um mau entendido que permitiu o casamento de Alice (definida como moça pacata, cristã, que conhece Internet, uma indiana de nome inglês) com Dubey (definido como moço laborioso e empreendedor, com nome indiano) união marcada pelo amor. Ou ainda na revelação de Adit a seu noivo acerca de sua relação com outro, que permite restaurar a ordem das coisas sob proteção dos antepassados, dos familiares que já se foram no momento da bênção das núpcias.

Mira Nair nos fala de hibridismo, mas nos fala também da dimensão identitária familiar. Este diálogo com o filme Um casamento à indiana se fez no sentido de elucidar as fissuras que se abrem em torno das identidades e de quem fala em nome delas. Daí o hibridismo, a mistura, são tratados em suas múltiplas dimensões, mas julgados em suas formas que ali são apresentadas como positivas operadas na tradição e, portanto como o melhor caminho para o desfecho da trama. Vem daí meu insight de pensar o valor simbólico presente na frase tornamos você um indiano dita por uma componente da família Verma, que mantinha sua posição de classe média através de estratégias de casamento. Este lampejo provocado pelo filme me levou a pensar acerca das estratégias sociais presentes no movimento de resignificação e uso político das noções de origem tão caras aos manipuladores das identidades.

(1) SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Cia das Letras, ano.p. 259. Said faz uma discussão interessante acerca da relação ocidente/ oriente, conferindo complexidade à simplificação tradicional/ moderno. O autor nos coloca o oriente para além de uma representação, propondo o romance como objeto privilegiado de análise da resistência e descolonização. Como tese central o autor propõe que o imperialismo tornou as culturas mutuamente híbridas.
(2)CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. Tradução Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 1997 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Cia das Letras, 2001. Em especial o capítulo 2 intitulado Misturas e Mestiçagens.
(3) A imprensa especializada trata a indústria cinematográfica indiana desta forma, é a estética de Bollywood. Tem um mercado que atinge além da Índia e seus milhões de habitantes, o sul e sudeste da Ásia, o Oriente Médio, parte da África. Designa também um estilo musical. Fonte: CD rom Um casamento à indiana, 2001. No filme a trilha sonora dance e folk embala muitas cenas tornando-o tributário da leveza e alegria deste estilo, além do contraste entre modernidade e tradição constituído pelas tomadas externas em Nova Delhi. Os personagens falam em hindu, punjabi e inglês. A família Verma apresenta um estilo de vida compreendido como de classe média ocidental.

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